Saori Kido e representatividade feminina

Laura
10 min readJun 26, 2020

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Essa é a única burguesa que eu defendo.

Qualquer fã de Saint Seiya provavelmente já se irritou com a capacidade de Saori Kido virar uma donzela em apuros mesmo sendo a reencarnação de uma deusa. Essa é uma das críticas mais comuns à personagem, além de seu péssimo caráter quando tinha uns 7 anos (e no começo da trama, na versão da Toei).

Com a ascensão de pedidos por melhor representatividade feminina nas séries, uma personagem principal porém escanteada realmente vai cada vez mais virando exemplo de como não representar bem as mulheres. Qual a utilidade de uma deusa que sempre desperdiça seu poder e faz todo mundo ter que se virar para salvá-la?

Além de achar um pouco exigente querer forçar as nossas visões de hoje sobre representatividade feminina em uma série shounen dos anos 80 (ah, eu prefiro mil vezes Saori à Bulma), eu tenho também uma visão um pouco “heterodoxa” sobre essa personagem e não acho que ela mereça assim tanto hate.

Como bem sabemos, Cavaleiros original não é uma série que tenta fazer um aprofundamento muito denso de personagens, nesse sentido Saori é tão “vítima” quanto os outros protagonistas da série. Mas os “buracos” deixados por Kurumada, ao longo do tempo, são mais positivos que negativos: é possível aproveitar essas lacunas para dar “complexidade” a essa (e provavelmente qualquer outro) personagem.

Ela também é vítima de frames com baixo orçamento.

Toda interpretaçaõ vai ser, claramente, questionável, mas dá para se embasar em detalhes da série para montar uma figura menos rasa e bastante interessante da mais injustamente odiada Atena.

É comum reclamarem da falta de “iniciativa” dela. Realmente, toda vez que Saori tenta entrar em cena, ela termina tomando uma flechada, presa num pilar, num vaso, ou qualquer coisa desse tipo. Mas, qual tipo de atitude poderíamos esperar? Ao contrário de encarnações como Sasha, Saori foi criada a vida toda fora do Santuário. Até os 9 anos, ela achava ser uma criança “normal”, quando o avô dela, no leito de morte, revela que ela é Atena. Veja bem o que esse grandissíssimo cafajeste fez: falou para a menina “tu é Atena, você que lute” e morreu.

Mesmo assim, Saori segue com o plano maluco de seu avô de montar um Torneio só para chamar a atenção de Saga. Ela quer dar um show midiático, botar a Guerra Galática em todos os canais abertos do mundo para simplesmente forçar o Santuário a fazer alguma coisa. Tudo isso sem nenhuma garantia que algum cavaleiro vai querer apoiá-la e, muito menos, que vai sair viva.

Ao revelar a existência dos cavaleiros para o mundo, Saori propositalmente causa uma situação incontornável para o Santuário. Ao mostrar que está com a sumida armadura de Sagitário, ela também deixa claro para Saga que é o bebê que ele tentou matar 13 anos antes. “Oi, usurpadora, sabe quem sou eu?”, o Torneio inteiro é a forma de passar esse recado. Vocês vão ter que concordar comigo, tem que ter muito culhão para botar uma banca dessa.

Basicamente impossibilitada de montar qualquer planejamento militar estratégico (o máximo que ela teria ao seu lado seriam 10 pirralhos de bronze), Saori segue em sua empreitada de se mostrar como Atena e livrar o Santuário de um suposto mal. E aqui existe uma pergunta que aparentemente quase ninguém no fandom faz: por quê?

Todos os protagonistas têm algum motivo para voltarem para o Japão: Seiya está em busca de Seika, Shun procura Ikki, Shiryu faz o que o mestre mandou e quer se provar como bonzão, Hyoga vai matar geral mas vira a casaca, Ikki está surtado depois de descobrir que é filho do Kido. Quando eles descobrem que Saori é Atena, ninguém acredita e, de qualquer jeito, nenhum está aparentemente disposto a defendê-la (esperado de cavaleiros treinados contra suas vontades). Mas, e a Saori? Por que ela aceita aparentemente com tanta facilidade seu destino como Atena?

Para entender essa personagem, precisamos responder a essa pergunta. Em um momento do mangá, Seiya questiona os motivos dela querer tanto peitar o Santuário. Saori responde “pelo destino… e pela justiça”… e isso, sozinho, não faz qualquer sentido. Se aos 9 anos, você descobrisse que é a reencarnação de uma deusa porque seu avô gagá te disse no leito de morte, você acreditaria com tanta facilidade?

Esse demônio em forma de criança com certeza não.

Acreditar na história do Kido não é só aceitar ser Atena (o que já é, por si só, muita coisa). É aceitar que os 100 órfãos que ela açoitava um ano antes são todos filhos desse homem — um grande cafajeste — e entender-se como a causa de basicamente todo o sofrimento que esses meninos passaram em orfanatos , na mansão e no treinamento (e, posteriormente, ser indiretamente responsável pela morte da maioria deles). Além de significar também aceitar que tudo até então na vida dela era uma grande mentira. Vocês acham que a menina do “seja meu cavalo” teria essa maturidade logo de prontidão?

A primeira coisa que eu me perguntaria no lugar dela é: “o que é ser Atena?”, depois eu me perguntaria várias vezes se isso é verdade ou faz algum sentido. “O destino e a justiça” é uma resposta que só faz sentido como síntese de uma reflexão, não tem nenhuma cara de ter sido a primeira reação frente ao fato.

A verdade é que a série nunca nos fornece um motivo real para Saori mergulhar de cabeça nesse mundo, o qual ela poderia ignorar completamente e viver feliz com sua fortuna imensurável.

A maioria dos fãs provavelmente passa batido por isso, mas eu gastei muita energia da minha vida tentando desvendar esse mistério porque, veja bem, a mudança da Saori não é simplesmente de uma garota mimada que se torna menos mimada. É de uma garota que usa discurso escravocrata (!!!) para alguém que se sacrifica em nome da liberdade humana.

É praticamente uma desconstrução completa, não é uma mudança superficial e, muito menos, simples.

Como Saori muda? Provavelmente, a morte do Kido é um “gatilho”. Ela perdeu a sua maior referência; descobriu que essa figura, por quem tem tanto afeto, é um velho safado e nojento; descobriu não ser neta dele; fica sabendo que é uma deusa (?!); descobre que a molecada que ela não gostava muito vai tudo servir de bucha de canhão numa luta sangrenta pela paz no mundo e ainda tem que mostrar para o mundo humano que, aos 9 anos, ela consegue administrar um conglomerado de empresas.

Esse é com certeza um evento propiciador de mudanças… mas não necessariamente as mudanças que aconteceram.

Para mim sempre foi evidente a necessidade de uma outra referência na vida dessa garota, alguém que nunca apareceu na trama. Nós sabemos que duas pessoas que devem cumprir um papel importante durante seu crescimento: o Kido e o Tatsumi.

O Mitsumasa provavelmente se dividia entre mimá-la até dizer chega e não estar em casa. O Tatsumi é uma péssima pessoa que deixa a menina açoitar crianças. Nenhuma dessas duas figuras parece capaz de conferir maturidade emocional à Saori e fazê-la perceber que, no mínimo, bater na garotada não é legal.

Surtos noturnos ao lembrar de todos os erros que cometeu na vida.

Descobrir ser uma deusa, inclusive, pode só fazê-la se sentir mais no direito de abusar de outras pessoas. Então, para mim, é evidente que a Saori passou por algum momento marcante, com alguém(ns), que nunca apareceu(ram) na história, que realmente serviu(ram) como ponto de “humanização” da personagem. Em Saintia Sho, a Chimaki parece utilizar Mii e Kyoko como dois pilares dessa mudança.

Além disso, para assumirmos que Saori pode ter uma mudança tão radical, temos que imaginar também se ela é realmente tão ruim quanto parece. Se ela fosse 100% cruel e egoísta, como aquele flashback indica, qualquer mudança fica muito mais improvável.

Aqui entra uma outra opinião minha: a Saori só era abusiva naquele grau com órfãos. Não entrando nos motivos para isso (podem ser muitos), eu acredito que Saori não trataria as outras pessoas desse jeito. É só olhar, por exemplo, a forma como ela trata o Tatsumi: ela pode soar fria e distante, mas aparentemente nunca sequer sobe o tom com ele (tirando uma vez, no anime).

Quando a gente coloca na equação “era ruim só com eles” junto com “descobriu que as crianças eram tudo vítimas de um velho escroto”, podemos supor que a revelação de ser Atena tem o potencial de fazer essa garota eventualmente parar e pensar “puta merda, o que eu fiz?”.

Se incluirmos a existência de outras pessoas de referência na perspectiva de uma garota que já poderia ser relativamente “gentil” com os outros, então temos algum caldo para uma mudança mais crível.

Mas ainda continuamos com a pergunta: por que ela aceitou esse destino? Bom, pode ser uma questão de “a merda já foi feita, não dá para fingir que não aconteceu”, mas eu gosto de pensar que, em parte, é porque a Saori é responsável. Sim, isso mesmo: a Saori é responsável.

Qual era a necessidade de uma criança de 9 anos de assumir a chefia da Fundação? Nenhuma. Ela poderia ter colocado alguém na presidência, enquanto ficaria apenas ganhando dinheiro.

Mas ela assumiu a empresa. Provavelmente por entender a Fundação como o legado do avô dela e por querer proteger esse legado (embora ela vá “sujá-lo” com um Torneio maluco). Afinal, mesmo sendo um cafajeste safado, ainda é o avô dela. Saori deve ver como uma responsabilidade dela como neta, mesmo adotada, proteger o nome do Kido.

Ela também abertamente encabeceia o Torneio podendo usar outra pessoa como “isca”. Mesmo que as estratégias deem errado, ela vai peitar de frente Saga, Poseidon e Hades. Ou seja, ela constantemente se mostra como alguém que puxa a responsabilidade para si, do jeito que sabe fazer.

Durante um processo de mudança, eu consigo imaginar alguém assim chegando à conclusão de que seu “destino” como Atena é também uma obrigação.

Aqui, acho que já podemos perceber que Saori não é alguém com pouca iniciativa, o problema é onde todas essas iniciativas terminam. Nas 12 Casas, ela vai enfrentar Saga, mas é pega desprevinida por uma flecha esquisita e, com isso, acaba impossibilitada de fazer muita coisa.

Morta.

Já em Poseidon, eu acredito que Saori, no mangá, realmente vai ao Templo Submarino cogitando lutar se necessário… Mas ela descobre que Poseidon é Julian. Quando Seiya tenta matar Poseidon, ela impede, dizendo que Julian é um humano inocente (apesar de deveras inconveniente).

Poderia Saori, ao perceber que lutar não era uma opção válida, ter se replanejado de última hora em busca da ânfora? Se enfiar num pilar esperando ser resgatada é um plano idiota, mas ela tinha, naquele mesmo dia, visto Seiya acordar de um coma para protegê-la de um punhado soldadinhos rasos. Teria sido então uma aposta?

Em Hades ela “se mata” e depois deliberadamente se enfia num vaso como parte de um plano. Se pensarmos que ela aprendeu em Poseidon que se botar em apuros dá certo como estratégia de última hora, aqui podemos supor num “refinamento” desse tipo de plano.

Afinal, quem vai imaginar que ser capturado pelo inimigo pode ser parte do plano? Vocês não precisam, obviamente, concordar com esse raciocínio e podem achar esses planos idiotas (eles são), mas acho que possibilidade existe, especialmente para uma garota de 13 anos que parece querer resolver quase tudo sozinha sem ter quase nenhuma experiência com batalhas.

Nesse raciocínio, temos uma outra perspectiva de Saori: de personagem totalmente superficial, ela se transforma em alguém que aprende (um pouco, ao menos) com as batalhas. Assim como a Saori de 13 anos não é a Saori de 7, a Saori em Hades é diferente da Saori nas 12 Casas. Eu sei que essa é uma visão bastante generosa, para dizer o mínimo, da personagem.

Para mim, Saori ser criada fora do Santuário é o que a permite ser uma Atena “ruim” e, ao mesmo tempo, a mais interessante Atena de todas. Em Lost Canvas, a Sasha age de forma muito mais técnica, mas ela tem também toda a estrutura do Santuário ao seu favor, consultando sempre o Mestre para tomar atitudes. Oras, que interesse eu tenho em uma personagem que age sempre como todos esperam que aja? Isso não tem graça.

Já a Saori descobre que é Atena e segue vivendo no Japão, se escondendo até revelar tudo num Torneio doido. Ela não sabe o que é ser uma deusa, como deve agir, nem nada e não há ninguém para ensiná-la. Ela mal sabe o que é guerrear, talvez um motivo pelo qual se agarra tanto a estratégias diplomáticas.

Saori não é general de exército, é uma empresária (e burguesa safada). Entre armadura roubada, rapto por corvos e até o ataque de um cavaleiro de ouro, também não sobra tempo para aprender muita coisa.

O mundo do Santuário é uma realidade alienígena, muito fora da vida dela. Não basta ter cosmo se você não sabe como usar. Não basta ser uma deusa se você não sabe como fazer, é uma garota de 13 anos criada normalmente e provavelmente treme de medo ao se deparar com o banho de sangue derramado por sua causa.

É exatamente por esse motivo que Saori tem um enorme diferencial como Atena. Se fosse criada no Santuário, ela “naturalizaria” a ordem das coisas. Ser Atena e lutar seriam coisas normais, naturais. “Faz parte”.

Mas, na geração atual, temos uma garota agarrada às memórias de um velho, assumindo abertamente a vontade de viver como uma menina comum em um ponto da trama.

Essa imagem eu só acho bonita mesmo.

Saori é apegada a sua própria humanidade, provavelmente se identificando muito mais com sua vida como Saori Kido do que como Atena (eu também me identificaria com aquela conta bancária, viu).

Mas é justamente por ser “humana demais” que ela abraça a “causa humana” com tanta facilidade, ao ponto de matar um outro deus sem se preocupar muito que toda a ordem da vida pós-morte vai ser destroçada porque o inferno vai ruir.

Saori deve ser, sim, a Atena mais “mole” de todas as gerações, mas é essa moleza que a leva a rejeitar os “jogos” entre deuses e quebrar qualquer tipo de “regra” criada pelos Olimpianos. Para uma personagem dos anos 80, eu acho que está é de bom tamanho.

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