Samurai X, o remake e o público

Laura
5 min readJul 8, 2023

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Breve comentário sobre moralidade de consumo de uma série de autor condenado por posse de pornografia infantil e outras coisas.

imagem: captura de tela de kenshin em remake de samurai x.

Eu pensei bastante antes de escrever esse texto. Primeiro porque esse assunto toma quase sempre uma proporção maior do que deveria. Segundo porque esse assunto me desgasta.

Eu sou a Laura e atualmente eu fico como editora-chefe do JBox, o que significa que sou eu quem insalubremente lida com os comentários nas notícias do remake de Samurai X.

Pra quem ainda não sabe, o autor de Samurai X foi preso em 2017 por possuir em torno de 100 DVDs de conteúdo pornográfico/exploratório de crianças no seu escritório. Ele foi condenado, teve a prisão suspensa (via dispositivo legal chamado sursis, bastante usado no Japão) e pagou uma multa de 200 mil ienes, que mal dá 10 mil reais.

Desde então, tudo sobre Samurai X se torna uma polêmica sem fim. Há quem diga que, apesar das leis japonesas de combate à pornografia infantil serem risíveis, o autor pagou pelo seu crime, o que não está tecnicamente errado e é o provável argumento da editora Shueisha para manter essa bomba sendo seriada. Há quem diga que precisamos separar a autor da obra. Há quem diga que consumir a série, seja via animê ou mangá, é imoral por ser dar dinheiro para um pedófilo potencialmente cometer crimes.

Todos esses argumentos são coisas que eu leio quando o JBox solta uma pauta de Samurai X — e um dos motivos é que o site tem colocado que o autor foi preso com posse de pornografia infantil no subtítulo e nas chamadas de redes sociais de todas as matérias sobre a obra.

Antes de mais nada, queria esclarecer uma coisa: o JBox sempre trouxe o caso nas matérias da série pós-prisão do Watsuki. Mas eu decidi dar mais destaque para isso porque muitas pessoas hoje apenas leem chamadas nas redes sociais: então seja via RT ou pela prévia do link que aparece nas redes, a informação estaria lá — e praticamente toda vez que o JBox dá algum destaque para o caso da prisão, aparece alguém dizendo que não sabia ou que não lembrava, o que indica que segue sendo necessário informar. O silêncio é só permitir que a ignorância reine.

Mas uma coisa me chama muito a atenção. Toda vez também que essas notícias saem, aparecem pessoas dizendo que o site está “tentando apontar dedos para quem vai assistir à série”, ou algo do tipo. E isso sempre me deixa confusa… porque as matérias nunca apontam o dedo para quem gosta da série.

As pautas apenas trazem informações do caso — de forma destacada, sim —, mas nunca há um direcionamento dizendo que alguém é culpado de gostar da série… o que me faz achar que, na verdade, essas pessoas é que se sentem atacadas ao serem forçosamente lembradas que gostam de uma série de um provável pedófilo, pois ninguém em qualquer momento apontou o dedo pra elas.

Eu acho essa reação ainda mais curiosa porque pra mim o menor dos problemas desse remake é o fato, já bastante claro, que existem muitas pessoas cientes do caso e mesmo assim dispostas a consumi-lo legalmente. Pelo simples fato de que o consumidor é o elo mais fraco da rede.

É muito mais trágico que grandes empresas, como a Aniplex (incluindo a Crunchyroll) e a Shueisha tenham em algum momento pensado que fazer um remake de uma obra de um cara preso por posse de pornografia infantil era uma boa ideia e iria “dar dinheiro”. Eles não estão errados na segunda parte: isso vai dar dinheiro, mas a que custo?

No entanto, a briga sempre vira uma questão moral do consumo. “Consumir Samurai X é correto?” sequer deveria ser uma questão em 2023. “Querer lucrar com Samurai X é correto?” deveria ser a pergunta que nós fazemos.

A moralidade do consumo de quem é bombardeado de propagandas bancadas por empresas com muito dinheiro é bem menos relevante que o fato de que, bem, existem empresas com muito dinheiro bombardeando as pessoas com propagandas de um remake que sequer precisava existir, e jogando para baixo de um tapete o fato de que um provável pedófilo com uma quantidade surreal de material pornográfico de crianças pôde voltar a trabalhar em uma revista tecnicamente voltada ao público infanto-juvenil após pagar uma multa risível e está “tudo certo” já que ele tecnicamente pagou pelos crimes cometidos.

E vamos deixar claro: pessoas que estão trabalhando nesse remake não têm culpa de nada e nem se importam com o sucesso ou fracasso comercial da animação, pelo simples motivo de que a maioria delas vai ser paga como freelancer, sem receber um centavo dos lucros (o mesmo vale para quem trabalhar com tradução e dublagem da série).

Quem precisa que esse remake funcione comercialmente não é o animador do LIDEN FILMS, mas as empresas que financiam essa bomba… e o Watsuki, porque, mesmo se ele não estiver no comitê de produção para dividir os lucros, ele ganhará uma porcentagem em cima das vendas de home-vídeo (NO MÍNIMO).

É, para mim, um pouco difícil separar o autor da obra quando o autor está vivo e ativamente lucrando com a obra, principalmente depois de ter cometido um crime tão nojento quanto posse de pornografia infantil (CEM DVDS, CEM!). Mas se existe um remake indo ao ar, isso não é culpa de quem vai consumir. Não dá também para apontar dedos para as pessoas como se não existisse toda uma engrenagem que cria e incentiva uma possibilidade de consumo que é muito maior que os consumidores individualmente.

É importante trazer a informação do que o autor fez, para que as pessoas, mesmo se optarem por assistir à série, optem sabendo o que estão fazendo. Mas mais importante que isso é: o primeiro dedo a ser apontado é em todo mundo que está envolvido em bancar a produção e distribuição dessa série. Porque quem não vê limite moral no lucro são, primeiramente, essas pessoas.

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