Vamos conversar sobre a existência mais inconveniente de Saint Seiya.
Hoje é aniversário dos 30 anos da estreia de Os Cavaleiros do Zodíaco na TV brasileira. A série é um marco na história do animê no Brasil, e até hoje tem alguma força dentro do país. Cavaleiros representa muita coisa pra muita gente de gerações diferentes.
Coincidentemente, a série estreou no Brasil no mesmo dia do aniversário de uma das personagens, a própria Atena, o que eu acho bastante divertido. Enfim, parabéns aos dois, esse texto não é sobre a história da série no Brasil e nem sobre a Atena especificamente. Também não é um texto sobre a minha relação com a série (o que, apesar de tudo, é um assunto que eu tendo a não falar tanto?).
A aproximação do aniversário da estreia da série por aqui me fez pensar bastante sobre Cavaleiros nas últimas semanas. E os últimos lançamentos audiovisuais da série voltaram a minha atenção a uma coisa que ocorre tanto a nível de produção quanto a nível de fãs: uma espécie de “sanitização” de certos eventos do mangá.
Além de acompanhar as produções oficiais da franquia, eu também sou uma leitora de fanfics de Saint Seiya há bastante tempo. Já comentei em algumas ocasiões que o anúncio e a transmissão dos reboots da série impulsionaram também fanfics de reboot no fandom. Sempre houve uma ou outra fanfic recontando a série, mas o número, ao menos na minha opinião, aumentou. É como se os fãs pensassem “Se a Netflix pode, eu também posso!” (embora a tendência com a fim de Next Dimension seja o recrudescimento das fanfics de continuação ou ambientadas em um futuro pós-Saga de Zeus).
Enfim, não quero discutir quais foram os movimentos entre os ficwriters de Cavaleiros ao longo dos anos. Mas, tem uma coisa que é presente não só nessas fanfics quanto também nas novas produções da série, algo que já esteve presente, em menor grau, desde a primeira adaptação do animê, que é a higienização já citada de alguns eventos da série.
O mais notável caso, e presente desde a adaptação da Toei de 1986, é a omissão, ou retirada explícita mesmo, do fato de Mitsumasa Kido ser pai biológico dos cem órfãos enviados para treinamento. É uma coisa meio assim: 99% de qualquer reboot oficial ou não oficial da história retira ou omite essa informação. E é sobre ela que quero falar!
Eu sei que essa é uma parte que causa muita ridicularização por ser bastante absurda e improvável, embora não fisicamente impossível, a ideia de o Kido teve 100 filhos num intervalo de uns 3 anos e isso tudo ainda antes de adotar Atena — ou seja, não poderia nem ser parte de um plano doido dele de fazer o exército de Atena com a única arma que ele realmente possui (o próprio pau, no caso).
Sendo sincera, como conceito, eu concordo que é engraçado. Mas, é inegável que, tosco ou não, o parentesco entre os protagonistas é importante no desenvolvimento de alguns deles, sendo o mais evidente o Ikki. A revolta do Ikki é bem menos interessante sem esse fator, o que leva alguns ficwriters a decidirem que apenas os 10 órfãos que seguem na trama são filhos deles, uma saída que eu não gosto tanto, mas entendo.
Existem outras sanitizações feitas na série, com omissão de passagens, atenuação de mortes, a diminuição da quantidade de órfãos enviados pelo mundo (muitas vezes aliada a um cenário onde só os 10 filhos foram enviados) e, claro, a diminuição da violência gráfica (essa última normal, esperada, e talvez até um tanto desejada). Mas, eu vou me focar nesta alteração sobre a origem dos órfãos porque eu quero tentar mostrar como retirar esse elemento torna a trama um pouco menos interessante do que ela é (e eu já tive a opinião contrária).
Acredito que há dois motivos comuns para omitir/retirar essa informação: 1) ela é muito chocante; e 2) é muito difícil de acreditar nisso.
A justificativa 1 é provavelmente mais importante para reboots oficiais, que buscam também o público infantil. A 2 acredito que seja o principal motivo para retirar isso nas fanfics (creio também que muitos dos ficwriters não gostam desse fato na série original, pela absurdez). Além disso, após o arco dos Cavaleiros Negros, essa informação dificilmente é invocada ou entra em pauta, o que causa a impressão que ela é totalmente descartável e inútil.
Contudo, como dito anteriormente, eu vou defender a paternidade do Kido como um elemento importante da trama de Cavaleiros. Ou pelo menos tentar.
A primeira coisa é que isso é importante para estabelecer quem é o Kido. Embora isso não seja dito com todas as letras da boca de nenhum personagem, é uma informação que ajuda a posicionar o Mitsumasa como alguém “sujo”. Se pensarmos na forma como a trama se desenvolve, é bem pouco provável que algum desses filhos tenha sido reconhecido como legítimo em algum momento (tem o Mei na Gigantomachia). Então essa informação coloca o Mitsumasa como uma espécie de maníaco por sexo ou pessoa que no mínimo se rende fácil aos “desejos carnais”.
Não é difícil supor que essa quantidade de crianças seja fruto do acesso fácil que um bilionário tem a mulheres por meio de relações de poder. O Kido pode ter tido 100 filhos visitando um bordel todos os dias, ou ele pode ter abusado de funcionárias, ou ele pode ter ludibriado moças inocentes, e, olha, ele pode ter feito todas essas coisas. Sei lá, são muitas opções, e diversos elementos da série nos levam a crer que dificilmente foram todas consensuais, se é que alguma relação foi consensual. E ainda teve pelo menos uma com quem ele teve filhos duas vezes, a mãe de Shun e Ikki!
A forma como os órfãos são tratados e o pouco que sabemos sobre o tempo que eles passaram na Mansão Kido reforçam a ideia de que o Mitsumasa não é exatamente uma boa pessoa, e fica até parecendo que ele é chefe de alguma máfia, ou talvez tenha relações.
E é essa pessoa que ficou responsável e foi eficiente em garantir a segurança de uma deusa virgem. O Kido é uma figura tão bizarra que o primeiro animê da série se viu forçado a tentar dar alguma redenção pra ele, e mostrá-lo como um “grande homem visionário”. É engraçado porque é frequentemente o que a grande imprensa faz com a imagem de “grandes empresários” que nunca fizeram nada além de explorarem e passarem a perna nos outros.
A imprensa do mundo de Saint Seiya provavelmente também glorifica o Mitsumasa, mas o leitor da série sabe que ele não merece. Ele foi uma pessoa horrível, que estragou a vida de muita gente, inclusive dos personagens que nós acompanhamos. Só que, ao mesmo tempo, ele foi responsável por Atena sobreviver e conseguir cumprir o objetivo de manter a Terra a salvo (por enquanto, pelo menos). Essa é uma figura complicada com quem o leitor e os personagens de Cavaleiros precisam lidar. E isso acrescenta complexidade ao universo da série.
Talvez fosse descartável se as ações do Kido não tivessem implicações nos outros personagens da série, e não estou falando simplesmente de ter gerado os principais defensores de Atena. Vai além disso.
Como já dito, isso é mais evidente para o Ikki, que sempre odiou tudo relacionado ao Kido e à vida que ele foi forçado a viver como aspirante a cavaleiro. A raiva que leva o Ikki a se voltar contra o Torneio não é um simples ódio surgido de ser diretamente responsável pela morte da Esmeralda, é de descobrir que ele tem uma relação sanguínea inapagável com o Kido.
O Ikki não vai até o Torneio simplesmente para executar traidores, buscar poder ou tirar onda, ele vai lá para apagar a existência de tudo que se liga a Mitsumasa Kido. É pessoal, íntimo, emocional, e vingativo. É a incapacidade de lidar com a realidade. E é uma pena que a série não foque muito nisso quando ele volta, porque se o Ikki volta para defender Atena, é porque ele de alguma forma está aceitando a realidade.
De forma menor, o mangá também mostra, brevemente, como Hyoga lida com essa informação, e como o Kido foi horrível mesmo com os garotos que sabiam que eram filhos dele. Infelizmente, não vemos muito do impacto disso sobre Shun, Shiryu e Seiya (que nunca se pergunta se a Seika também é filha do Mitsumasa), embora esteja implícito que essa informação é central na resistência deles em se aliar a Saori após descobrirem que ela é Atena, e inclusive na agressividade com a qual o Seiya rejeita se relacionar com tudo isso.
Todos eles detestam e desprezam o Kido, ao ponto de que não querem ter nada a ver com ele de forma alguma, independente do que deveria ser a missão deles como cavaleiros (até porque eles foram treinar para virar cavaleiros à contragosto). As descobertas são algo que eles precisam enfrentar para seguir adiante como guerreiros.
Por fim, isso ainda tem impacto na Saori, que a série também não aborda muito. É, ou deveria ser, parte do desenvolvimento da personagem ter que lidar com esse legado confuso e sangrento do Kido, o que inclui também encarar os danos que ela mesma, a Brás Cubas greco-japonesa, fez aos filhos biológicos desse homem — desafio para o qual ela claramente não está totalmente preparada no mangá (evidenciado pelo trecho onde pede para o Seiya não falar mais mal do avô dela porque ele “sofreu com a decisão” e apenas “seguiu o caminho ditado por sua estrela/seu destino”).
O animê de 1986, os reboots e algumas fics mostram o apego (às vezes até com leves doses de dependência emocional) entre Saori e a figura do avô, mas sem mostrar o desafio real que é encarar a herança do Kido e o impacto de toda a descoberta da verdade na vida dela. Não é possível conceber a mudança e o amadurecimento da Saori ao longo da série (que ocorre majoritariamente fora de tela no mangá, na lacuna dos 6 anos de treinamento dos órfãos) sem colocar esse legado como algo central, embora não necessariamente exclusivo. A mudança dela passa necessariamente por, no mínimo, reconhecer as contradições do Kido.
O que se faz ao excluir esse trecho incômodo da trama é tirar dos personagens principais certas possibilidades de densidade. A paternidade e as ações do Kido reverberam em todos eles, e na história original também servem de ponto de união —os cinco bronze boys principais estão unidos, além de tudo, pelo sangue. Tudo bem que essa última parte é sim cambiável com a ideia de uma amizade construída a partir da vivência e dos ideiais comuns (que, sinceramente, é mais interessante que eles serem irmãos).
Mas, existe também entre eles e a Saori uma questão de família. No início, ela é a representação da família que deveria ter acolhido eles, mas tornou a vida de todos um inferno. Depois, descobrimos que, na verdade, eles já eram, por sangue, parte dessa família, e ela é uma órfã que foi acolhida no lugar deles, enquanto eles foram rejeitados. Pela regra, eles deveriam ser herdeiros do Kido, não ela. Mas, eles já desgostam tanto do Kido que nem disso fazem questão. E depois de tudo isso, eles se unem a ela e passam a lutar por ela.
Tudo isso ainda tem impacto se excluirmos a paternidade do Kido: os meninos adotados e maltratados pela neta legítima, depois descobrem que ela não era neta “de verdade”, mas deixam isso de lado e vão todos lutar contra os vilões. Porém, os laços reais sanguíneos, de quem é, de fato, filho e quem é, de fato, adotado, traz um grau a mais de complexidade nas relações entre eles. A neta adotada batia nos filhos legítimos, e o próprio pai deixava bater. E a doideira é que é bem possível que, ao ponto de Next Dimension, eles enxerguem a Saori como uma irmã deles. É uma família despedaça que se (re)constrói ao longo da série, e que reforça que relação sanguínea não é um determinante para construir família (reforça, porque isso também é demonstrado no cenário onde eles não são parentes de facto).
Enfim, retirar isso principalmente para transformar Mitsumasa Kido em algum tipo de visionário que estava apenas buscando ajudar a humanidade é ignorar o quão importante para trama é ele ter sido, na verdade, um grande filho da puta que calhou de encontrar um bebê divino e resolveu tomar uma atitude controversa (e com tons de máfia) em relação a isso. A riqueza dos Kido não é mostrada como algo bonito, e os protagonistas sentem isso na pele quando crianças. Aliás, a série é bastante consciente de que riqueza, poder e fantasias de poder se relacionam com abusos.
Talvez se os cavaleiros de ouro ouvissem a história toda, eles achariam que o Kido foi simplesmente um homem com “coragem” de seguir o destino que lhe foi imposto. Mas, nós, leitores, e os protagonistas vemos qual foi o efeito disso, e que não é bem assim.
Quando se tira isso de cena, o que ocorre é uma simplificação de quem é mocinho e quem é vilão. Pensando do ponto de vista da ordem dos fatos no mangá, mesmo a Saori sendo a Atena legítima, ainda é difícil simpatizar com ela (como demonstram os protagonistas); o mangá também já demonstra que o Grande Mestre é uma pessoa com “duas faces”.
No animê em 1986, nos reboots e em muitas fanfics, essa ambivalência, de parecer que os dois lados erraram até certo ponto, não existe. A Saori está certa, e o Mestre está errado (e ajudando golpes de Estados mundo afora), e ponto final. Exatamente por isso, não há motivo para os bronze boys terem dúvidas.
Apaga-se esse detalhe porque ele é incômodo. Mas, é justamente por ele ser incômodo que ele é importante, que ele acrescenta à trama. É até irônico exigir mais densidade para os personagens e a trama de Saint Seiya quando os elementos originais capazes de conferir densidade à série são tão facilmente rejeitados.
Eu entendo que para muitas pessoas os 100 filhos do Kido tiram a credibilidade da série. É um absurdo, difícil de acreditar. Mas, e daí? Estamos falando de uma ficção com personagens capazes de andar na velocidade da luz dando golpes que destroem montanhas; capazes de doar 2/3 do sangue correndo no corpo, saírem vivos e ainda encararem uma batalha mortal; capazes de matar deuses que tentam destruir a humanidade com um eclipse ou uma chuva incessante. Uma ficção com base em mitologia grega, que é cheia de histórias surreais (pois o sobre-humano e o impossível são parte do domínio do deuses!). O Kido ter 100 filhos é tão factível quanto a Leia, em Star Wars, sair ilesa de um ataque de tiros de Stormtroopers (um exército treinado para atirar!!!). Sinceramente, se o problema é que um absurdo, então não tem problema.
Feliz aniversário para Cavaleiros no Brasil. Feliz aniversário pra Saori em Cavaleiros. E não poupemos os personagens de enfrentarem desafios terríveis e lidarem com os mais horríveis simulacros de realidade (não só em Cavaleiros).