Esse mangá é de esquerda? One Piece e a conduta contraditória do autor

Laura
7 min readJan 10, 2024

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imagem: balão de fala com dois pontos de exclamação ao lado de ilustração de luffy, feita ou pelo oda ou por uma IA.
Divulgação: Eiichiro Oda?

Você conhece One Piece? É um mangá muito famoso. Tem animê na Netflix. Tem até uma série live-action famosa. É um fenômeno e tanto, há mais de 20 anos em seriação, com mais de 1000 capítulos (e episódios do animê).

O sucesso de One Piece fez com que muitos criadores de conteúdo voltassem sua atenção à obra, e algumas coisas curiosas acontecem desde então. Sempre houve um segmento da comunidade de fãs (e de criadores que, antigamente, eram de nicho) em associar a série a uma mensagem “de esquerda”, com um viés “marxista” de análise (entre parêntesis porque nem sempre esses criadores realmente se apoiam em ferramentas teóricas do marxismo).

Não há nada de errado em analisar uma obra por teorias “de esquerda”. Nada. Mas com o fenômeno crescendo, essa discussão — One Piece é de esquerda? — tem tomado as redes e se tornado, sinceramente, cansativa.

imagem: luffy em cena do anime de one piece.
Divulgação: Toei.

Mas, há um ponto em que nenhum dos criadores de conteúdo que reivindicam One Piece para seu lado ideológico olham: o autor Eiichiro Oda. Quer dizer, até olham, mas para falar besteiras como “ele tem uma foto do Che Guevara”, como se isso realmente significasse muita coisa.

Só que quase ninguém fala da proximidade que Oda tem com mangakás condenados por crimes relacionados a menores de idade.

Você conhece o autor de Toriko, o Mitsutoshi Shimabukuro? Antes de seriar Toriko, ele foi preso por “favorecimento da prostituição infantil”, que é como chama o crime de pagar um menor de idade para fazer sexo com você. Isso aconteceu em 2002, quando ele tinha 27 anos. Shimabukuro foi preso por se encontrar com uma garota de 16 anos em um motel, e admitiu ter pago 80 mil ienes para ela fazer “atos indecentes” (não está claro nas notícias se foi prisão em flagrante).

Segundo reportagens em inglês da época (as em japonês já saíram do ar), eles se conheceram por um site de encontros por celular, a garota usava um pseudônimo e Shimabukuro fingia ser um empregado em uma empresa de tecnologia. Esse tipo de site era comumente usado para prostituição infantil.

Bem, não podemos saber muita coisa além de que o sistema judiciário japonês considerou haver provas o suficiente de que o autor estava ciente do que fazia com a jovem e fez mesmo assim. Dezesseis anos em muitos países é uma idade na qual os adolescentes são considerados como pessoas capazes de consentir, mas sem acesso ao processo (algo dificultado pela retirada das notícias em japonês do ar) é difícil saber exatamente o que estava sendo investigado. Porém, o Japão é meio leniente com esse tipo de crime, então possivelmente tinham provas bem contundentes.

Ele foi condenado a dois anos de prisão, mas teve a pena suspensa condicionalmente (sursis) por quatro anos — um dispositivo legal bastante comum no Japão, pelo qual a pena deixa de ser aplicada. Neste caso, há um “prazo” (período probatório) dentro do qual a suspensão pode ser revogada (e então a pena de prisão seria aplicada). Ou seja, se o réu desrespeitar as condições durante o período, ele passará a cumprir a pena originalmente imposta.

Quatro anos, ou seja, do fim de 2002 até o fim de 2006, Shimabukuro estava em período probatório. Em 2004, ele retorna à Shueisha, e começa a escrever Ring, seriado na Super Jump. Em 2008, vem Toriko, na Shonen Jump.

E o que tudo isso tem a ver com o Oda? Bem, aparentemente, o Oda foi uma figura central no retorno do autor à editora. Em 2017, como parte das comemorações dos 20 anos de One Piece, o Shimabukuro escreveu uma historieta intitulada Oda-san to no omoide-manga! (ou Memories with Oda-san), no qual ele mostra como Oda o encorajou a escrever Ring quando ele estava… sendo investigado e condenado por prostituição infantil?

Vamos agora para 2017, o ano em que Nobuhiro Watsuki, autor de Samurai X (Rurouni Kenshin), foi preso por possuir cerca de 100 DVDs (!) de pornografia infantil em seu escritório. Watsuki assumiu o crime e ainda teria dito aos policiais que “estava interessado na nudez de garotinhas”, segundo o Asahi e o Japan Times.

Dada a quantidade enorme, achei comentários que diziam que a polícia investigou a possibilidade do autor distribuir material, mas não consegui confirmar — algo também difícil de apurar, já que boa parte dos sites japoneses tirou do ar as notícias sobre a prisão do autor, divulgadas conforme os fatos ocorriam.

Watsuki foi condenado a uma multa de 200 mil ienes (em torno de 6 mil reais na época), aparentemente sem pena de prisão (que passaria por sursis de qualquer forma, já que a pena máxima na época era 1 ano de prisão, e o requisito para sursis é pena de prisão de até 3 anos para quem nunca foi preso). Ele estava seriando uma continuação de Samurai X, que é publicada até hoje.

Oda foi assistente de Watsuki, o que, em si, não significa nada. Acontece que, em 2020, haveria uma exposição comemorativa dos 25 anos de Samurai X — essa exposição foi aparentemente adiada para 2021, provavelmente por causa da COVID-19. E, nesta exposição, haveria uma entrevista do Oda com o Watsuki (anunciada já em 2020).

A notícia em si já caiu mal, mas quando o conteúdo da entrevista foi divulgado nas redes, muitos fãs ficaram decepcionados, porque, além de se prestar ao papel, Oda ainda enche Watsuki de elogios (dizendo, por exemplo, que ele é “uma pessoa incrível”).

Além de Oda, mais 14 mangakás também enviaram mensagens para o autor neste evento: Masashi Kishimoto (Naruto), Takeshi Obata (Death Note), Hideaki Sorachi (Gintama), Hiroyuki Takei (Shaman King), Kentaro Yabuki (Ayakashi Triangle, To Love Ru), Riichiro Inagaki (Dr. STONE, Eyeshield 21 — não confunda com o Yusuke Murata ou o Boichi), Yusei Matsui (Assassination Classroom), Yasuhiro Nightow (TRIGUN), o já citado Shimabukuro, Shinya Suzuki (Bari Haken), Kazuhiro Fujita (Ushio & Tora, The Black Museum), Nobuyuki Anzai (MÄR), Matsui Katsunori (Hanakaku) e Mikio Ito (Normandy Himitsu Club, outro assistente do Watsuki, que já foi homenageado em One Piece).

Antes de seguir, quero pontuar duas coisas sobre os nomes citados. A primeira é que em 2020/2021, Kimetsu, Jujutsu, My Hero Academia, Haikyu e outras séries mais recentes já faziam bastante sucesso e, mesmo assim, são pouquíssimos os autores da geração dos sucessos dos anos 2010 que deixaram mensagens. A segunda é que não há nenhuma mulher na lista. Eu acho que esses dois apontamentos dizem muita coisa sobre a geração mais atual de mangakás.

Enfim, são dois casos em que houve um crime cometido ligado a menores de idade, e dois casos em que o Oda parece estar lá para apoiar incondicionalmente os criminosos, sem se referir às vítimas. Como será que se sentem vítimas de abuso infantil ao lerem um autor renomado chamar um homem condenado por posse de tanto material de pornografia infantil de “incrível”?

Gostaria de deixar claro que eu acho que criminosos devem ter o direito de se restabelecerem e viverem em sociedade (quando for possível) e viverem de forma digna durante e após cumprirem suas penas, embora não ache que uma revista famosa com foco no público jovem seja o ambiente de trabalho mais adequado para quem foi condenado por crimes envolvendo menores, já que é um espaço que invariavelmente facilita o acesso do autor a menores de idade.

Mas o fato é que Oda não tem problema em publicamente se associar, elogiar e ajudar pessoas que cometeram crimes considerados nojentos por boa parte da população. Ao mesmo tempo, isso diz muita coisa sobre ele, mas também não diz nada, até por não conhecermos os motivos por trás de tanta camaradagem.

Contudo, é incômodo como análises “de esquerda” de One Piece parecem ignorar a materialidade das ações do criador. Existe um distanciamento entre autor e obra, mas esse distanciamento não é total.

Não significa, claro, que One Piece defenda pedofilia ou qualquer coisa do tipo, essa seria uma análise esdrúxula a se fazer. Também não significa que Oda não poderia ter um viés “de esquerda” (afinal, gente que faz coisas condenáveis existe aos montes dentro de qualquer ideologia, né?), ou que sua obra não possa ser analisar por ferramentas teóricas de esquerda (pode, sim, independente da ideologia do autor).

Mas eu acho que quando se fala da intenção do Oda aqui ou ali, ou se busca associar uma obra a todo custo a uma crítica anticapitalismo ou o que quer que seja, eu acho que precisamos, sim, olhar para os atos questionáveis de tal autor. Porque o pensamento esquerda é um contrassenso do senso comum, o pensamento de esquerda é ver além daquilo que a ideologia dominante prega, então é muito difícil que uma obra seja de esquerda “ao mero acaso”, então me parece paradoxo quando se fala que alguém que deliberadamente passa pano para pedófilo esteja defendendo incondicionalmente as classes oprimidas e tentando ensinar ao leitor o caminho da libertação.

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