Earthbound: As coisas sérias por trás das piadas

Laura
7 min readNov 30, 2019

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At times like this, kids like you should be playing Nintendo games.

SPOILER WARNING: Sim, este texto tem spoilers de um jogo dos anos 90.

© Ape / HAL Laboratory / Nintendo

Earthbound tem um status meio curioso por essas bandas. Enquanto a maioria das pessoas do meio gamer ouviu falar, e o jogo parece ter um status meio “clássico cult”, uma boa parte nunca jogou, seja por não gostar do gráfico, do sistema de batalha ou só não ter paciência para baixar a ROM e etc mesmo. Quem me conhece sabe que eu amo Earthbound com todas as forças do meu ser porque eu acho que ele trabalha com humor e crítica social de um jeito que poucas obras conseguem. Em resumo, eu me divirto jogando Earthbound de uma forma que não me divirto jogando qualquer outro jogo. Aí eu simplesmente tive vontade de fazer um texto falando sobre e é isso aí. Não espere nada muito estruturado, apenas vou jogar coisas meio aleatórias que acho bacanas do jogo.

Primeiro, vou fazer um resuminho da história: tudo começa no ano de 199X, em Eagleland (uma paródia dos EUA). O menino Ness estava dormindo em sua casa e foi acordado por um barulho. Ele foi lá checar o que era, mas o seu vizinho chato Pokey ficou enchendo o saco, a polícia estava no local e ele voltou para a casa. Depois ele foi lá de novo, viu que era um meteorito e uma mosca aparece dizendo que veio do futuro e que junto com mais 3 crianças que ele ainda conhecerá (Paula, Jeff e Poo), ele precisa salvar a Terra do Giygas, um alien. Então, Ness embarca nessa aventura, que é cheia de bizarrices.

Um dos pontos que eu mais gosto nesse jogo é que ele se passa numa paródia do mundo real, então você fica andando por cidades, pega ônibus para ir de uma a outra, assiste show de banda, etc. Talvez, nesse sentido, a experiência de explorar o mundo de Earthbound seja parecida com a de explorar as regiões de Pokémon, com a diferença que, ao invés de Pokémons, você vai encontrar apenas muita gente meio sem noção no seu caminho, e ocasionalmente vai se ver batalhando contra um hippie vintage aleatório enquanto toca um negócio que parece Johnny B. Goode (quando isso aconteceu, não teve mais volta para mim).

Mas para muito além desse tipo de situação boba, Earthbound faz, do seu modo, diversas críticas a diversas instituições sociais. A primeira delas é a polícia. Logo que Ness sai para ver o que estava acontecendo quando cai o meteorito, ele se depara com a polícia da cidade, Onett, fechando as vias para analisar a situação porque… eles gostam de fechar as vias, eles querem fechar as vias. Eles são famosos por fazer isso.

© Ape / HAL Laboratory / Nintendo

Por trás de uma piada boba dessa, está uma certa ideia de que a polícia é uma instituição idiota e que faz (ou pode fazer) o uso da força de forma aleatória. Uma ideia que fica um pouco mais clara logo depois de Ness resolver um problema da cidade (aliás, o qual o prefeito disse que só aceitaria ajuda caso Ness aceitasse que a prefeitura não teria qualquer responsabilidade sobre o que acontecesse com ele). O chefe da polícia pede para Ness passar na delegacia e lá ele manda quatro agentes policiais e um sargento baterem no garoto. Após derrotar os quatro, o sargento foge.

Uma parte do fandom do jogo associa essa passagem ao caso Rodney King, que ocorreu em 1991, quando King foi espancado por quatro agentes policiais e um sargento numa delegacia de Los Angeles (foram todos absolvidos num primeiro julgamento mesmo com gravações do espancamento). Essa analogia do jogo, embora trate de violência policial, é complicada porque o caso de Rodney está relacionado com racismo, já que o rapaz era negro — as duas situações, na verdade, não são tão comparáveis assim.

Posteriormente, você chega em uma outra cidade, controlada por um empresário magnata que virou prefeito (haha, essa aqui é óbvia né?) e se utiliza do aparato policial para manter seu domínio sobre a cidade. E essas são todas as aparições relevantes da polícia no jogo: praticando abuso de poder, seja de forma truculenta ou de forma aleatória.

Outro assunto que Earthbound toca são certas seitas religiosas. Na cidade de Twoson, está crescendo o tal do Happy-Happyism, um culto ao azul. A ideia do happy-happyism é pintar tudo de azul para que o mundo fique em paz. Eles criam uma vila própria, a Happy Happy Village, onde tudo é azul (até os animais foram pintados de azul). Os membros dessa seita se vestem com uma roupa encapuzada azul… parecido com… a Klu Klux Klan. Na versão japonesa, essa referência é mais óbvia porque eles tem um HH no capuz, que lembra um pouco KKK (os americanos mudaram algumas outras coisas na localização, este site faz um levantamento legal delas):

© Ape / HAL Laboratory / Nintendo

Os membros dessa religião são fanáticos que vão de porta em porta convencer as pessoas a se juntarem ao Happy-Happyism e, ao que tudo indica, são racistas também (Valéria, uma amiga minha, notou esses dias que na Happy Happy Village não tem nenhuma pessoa negra — embora não sejam muitos, a maioria dos lugares do jogo conta com NPCs negros, mas esse aí não). Eles raptam a Paula para torná-la uma sacerdotisa da religião deles. Acho que a pegada fica ainda mais clara com o líder desse culto sendo o “Carpintor”, um trocadilho com “carpinteiro” e “pintor”.

© Ape / HAL Laboratory / Nintendo

Falando de coisas menos compromissadas, outro momento que eu gosto bastante é quando chega a cidade de Summers, que é para ser alguma dessas praias da Europa frequentada por gente rica. As pessoas ali são arrogantes, chatas e tudo é absurdamente caro. Existe um clube em Summers onde só pessoas que sabem uma senha conseguem entrar. Lá, as pessoas apreciam uma pedra enquanto falam coisas pedantes:

© Ape / HAL Laboratory / Nintendo
© Ape / HAL Laboratory / Nintendo

Devido a frase acima (uma das minhas favoritas, sinceramente), muita gente diz que essa parte é uma tirada de sarro com pessoas de esquerda em si. A minha impressão, no entanto, sempre foi que a crítica é muito mais a uma postura pedante de gente rica academicista (e majoritariamente branca) do que com quem simplesmente entende o capitalismo como um sistema falido. Tanto que o jogo tira, o tempo todo, sarro desse mesmo capitalismo (e a “continuação”, Mother 3, tem uma clara postura anti-capitalista).

Aliás, falando em capitalismo, a relação do Ness com o pai dele durante o jogo é algo que entra aí no meio, na minha opinião. O pai do Ness é um telefone, porque ele está sempre fora trabalhando. Ele salva o jogo e transfere dinheiro para a conta do filho durante a viagem. É bem claro aqui o assunto de pais ausentes devido a excesso de trabalho (embora a família seja presente de alguma forma no meio dessa ausência). Aliás, só por nota, durante esse tempo, a irmã mais nova do Ness começou a trabalhar no Escargo Express, que é tipo um Rappi, um serviço para onde você liga pedindo para entregarem coisas.

Além disso tudo, Earthbound é um dos primeiros jogos que sei com uma representação LGBTQ+ positiva: o Tony. Ele é um amigo do Jeff, um dos membros da party, e durante o jogo, ele deixa, seja em telefones ou cartas, bastante claro o quanto ele sente saudades do Jeff e quer vê-lo novamente. Durante um tempo, foi só uma teoria do fandom que o Tony poderia ser gay, mas o Itoi, principal desenvolvedor do jogo, já confirmou que sim, o Tony foi escrito como um personagem gay.

© Ape / HAL Laboratory / Nintendo

E, por fim, vou falar de uma das ideias que acho mais geniais nesse jogo: o conceito de “não-violência”. Você não mata nenhum inimigo: as pessoas voltam ao normal e os animais ficam dóceis, só os objetos são ocasionalmente destruídos ao final de uma batalha (se assistirem o vídeo do New Age Retro Hippie que coloquei lá em cima até o final da primeira luta, dá para ver isso mais claramente). Tudo bem, na lógica do jogo acontece como nos outros: você luta com um inimigo, ele some do mapa. Mas o jogo se posiciona ao afirmar que você não está matando ninguém, apenas se defendendo. Não é à toa que essa é uma das mais claras inspirações de Undertale e não duvido que foi daí que saiu a ideia da rota pacifista. O final do jogo é uma reafirmação disso, porque quem salva o mundo não são, no fim das contas, os quatro da sua party (a luta com o Giygas é emocionante). Mas, como essa passagem ocorre eu não vou estragar.

Enfim, não acho é que ninguém vai ler isso mas Earthbound é genial, aborda um monte de coisa importante e merece muito amor. É isto, eu só estava muito afim de elogiar este jogo.

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Laura
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Escrevo uns textos aí quando tô afim. Portifólio: https://lgassert.journoportfolio.com/

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