Cavaleiros do Zodíaco e os “fãs quarentões”: existe mesmo um problema?
Se existe algum “velho de 40 anos” atrapalhando a franquia, é um que autoriza a produção de novos projetos.
Desde sua estreia no Brasil em 1994, Os Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya) conquistou um lugar de importância na história da animação japonesa no Brasil que, independente do quão cambaleante a série se torne, ninguém vai tirar.
Cavaleiros também talvez seja o primeiro animê que viveu um choque geracional no Brasil. Acontece que a série foi reprisada, tanto na TV fechada quanto na TV aberta, nos anos 2000, angariando novos fãs, para além dos que viram o animê na Rede Manchete.
Ao contrário de uma criança dos anos 90, para quem Cavaleiros talvez fosse o primeiro exemplo de animê de ação ultraviolento, dificilmente a série seria “a primeira de seu nome” para uma criança dos anos 2000. O que eu quero dizer com isso é que a franquia reuniu duas gerações de fãs que vão experienciá-la de formas muito diferentes.
Com isso criou-se uma espécie de divisão: tinha os fãs “raiz”, que viram a série na Manchete, com dublagem da Gota Mágica e entre reprises sem fim, e os fãs “nutella”, que viram a série no Cartoon ou na Band, com redublagem da Álamo e numa tacada só. Estaria tudo bem se não houvesse um espaço onde as duas gerações se encontravam: a internet (fóruns, sites de nicho e o Orkut, especificamente — quem viveu lembra da CDZona).
Eu sou da geração “nutella”, e minha experiência inicial com outros fãs de Cavaleiros que não fossem meus amigos ou colegas da escola não foi das melhores: eu sempre senti que havia um discurso que “invalidava” a minha experiência. Porque eu assisti na “pior dublagem”, sem saber o que é ver três vezes os primeiros 51 episódios até descobrir o que ocorre depois da Casa de Leão, sem o “Cavaleiro de Juninho”, o “Ken”, sem acreditar em fake news de “revista informativa”, ou qualquer outra experiência compartilhada que quem viu a série na Manchete acabaria tendo. Não, a minha experiência sempre foi “menor”.
No começo de 2000, os fãs foram surpreendidos com um mangá de Cavaleiros que não era do autor original: Episódio G, focado nos cavaleiros de ouro, e um sucesso imediato, ao menos no início, abrindo a porteira dos spin-offs. Contudo, a série sofreu depois um segundo “choque geracional”: a chegada de Lost Canvas trouxe à franquia novos fãs, mais acostumados com os “shounens moderninhos” e menos interessados na obra original de Masami Kurumada ou sua adaptação pela Toei.
Agora havia mais de uma versão do que poderia ser uma história de Cavaleiros. Criou-se uma espécie de “guerra cultural” para definir qual é o melhor Cavaleiros e o que exatamente seria a “essência” da série. Apesar de G ter vindo antes, foi o estrondoso sucesso de Lost Canvas, que basicamente reformulava a série mostrando que poderia existir Cavaleiros para além dos persangens já conhecidos, que acabou causando as discussões mais acaloradas — vale dizer também que LC começou a ser seriado numa época em que o acesso à internet (e, por consequência, à pirataria digital) estava crescendo rapidamente no Brasil.
O discurso “pobre desta geração que não viveu os tempos áureos dos anos 90” começou a ser rebatido com um conceito simples: manchetossauro, implicando que os fãs da época da Manchete eram velhos e “atrasados”, como dinossauros, seres já extintos há muito tempo. A briga geracional para descobrir qual é o melhor Cavaleiros vira a norma.
A estreia de CDZ: Ômega causa um novo furor nos fãs. Ômega tinha um estilo gráfico um pouco mais próximo de Precure, e um foco claro no público infantil, sendo instantaneamente rejeitado por uma parcela dos fãs mais velhos, que às vezes deixavam explícita a ideia de que a série parecia muito… “gay”… para os gostos deles. “O que fizeram com nosso desenho másculo, sangrento e de armaduras duras?”, se perguntavam alguns.
Abandonada por uma parcela dos fãs antigos (inclusive por parte dos tais “canvetes”, supostamente mais “mente aberta” que seus colegas “manchetossauros”), a distribuição internacional podre de Ômega à época do lançamento, quando fãs de animê já eram acostumados a assistir (mesmo que ilegalmente) seus animês semanalmente, ajudou bastante a nova série a não ter qualquer expressividade fora do círculo consolidado de fãs da franquia e falhar em criar fãs mais jovens fora do Japão.
Apesar de Ômega ter sido, sim, um sucesso internamente (+90 episódios não é pouca bosta, como dizem por aí), a percepção internacional é de que foi um flop porque, de fato, internacionalmente ela foi um fracasso.
Talvez de olho nisso, a Toei logo depois lançou Alma de Ouro, trazendo ninguém menos que eles mesmos, os cavaleiros de ouro luz rayovac clássicos revividos em Asgard (?!). Com uma distribuição internacional bem mais acertada, com simulcast e tudo mais, Alma de Ouro movimentou o fandom internacional, vendeu muitos bonequinhos, mas, sendo basicamente uma série que busca agradar aos fãs consolidados da franquia, que já conhecem o apelo dos dourados, ela não foi capaz de “renovar” a base de fãs e não fez sucesso fora dos países onde Cavaleiros já é um sucesso.
O que veio depois disso, no mundinho audiovisual da franquia, foi uma sequência de tropeços e erros da Toei. A começar pela animação de Saintia Shô feita em power point e des(cons)truindo toda a narrativa do mangá homônimo para servir como uma espécie fusão entre um remake da Saga do Santuário, um Alma de Ouro 2.0 e alguma coisa que ainda lembre vagamente o quadrinho de Shô.
Depois veio um reboot que, logo que foi anunciado que o único personagem principal que confronta o modelo padrão de masculinidade seria uma mulher, já estava natimorto, e a primeira temporada fraca só serviu para enterrar o defunto. A segunda temporada do remake, independente de sua qualidade, já ficou fadada a ser acompanhada por um círculo previamente consolidado de fãs da franquia.
Por fim, veio ele: o filme live-action que começou, para muitos, como a realização de um sonho, mas entregou um “deu tudo errado”. A bomba era tão clara que o investimento em marketing foi restrito, o filme saiu sem divulgação e só foi capaz de fazer alguma bilheteria em locais onde a série já é consolidada, ou seja, com a audiência que já é fã da franquia e assistiria ao longa de qualquer jeito.
Qual é o ponto de falar tudo isso? Bem, acontece que, a cada fracasso da franquia em se expandir, a culpa vai sempre apontada ao mesmo grupo: os “fãs quarentões manchetossauros de Saint Seiya que não aceitam mudanças”. Passou a existir, em alguns setores do fandom, uma certa ideia de que quem não gosta dos novos produtos, feitos para renovar os ares, é um velho caquético inimigo da série e apegado a sua própria infância.
É construído um discurso de que é por causa desses fãs, que ficam esbravejando nas redes (supostamente), que nada da franquia vai para frente. É como se os executivos da Toei ou da Kurumada Pro estivessem sempre com medo dos “manchetossauros”.
Eu não vou mentir: eu já disse — e se não disse, já pensei — que os fãs de “mente fechada” atrapalham a franquia. Pra quem teve por tempos suas experiência “invalidada”, é por vezes sedutor rebater que o males da franquia são culpa desse mesmo grupo “purista saudosista da Manchete”. Mas, cada vez mais, esse raciocínio não faz qualquer sentido.
Quero dizer, a responsabilidade de agradar é de quem está oferecendo o produto. Se a Kurumada Pro e a Toei acham que a série deve se renovar em linguagem, aparência, ou o que for, não há problema. Mas devem então construir os novos produtos pensando em quem querem agradar, como vão agradar e quem elas não vão agradar.
Todos os flops mais recentes de Cavaleiros caem no mesmo erro: eles querem ser novos, ousados, de um lado, mas eles também querem abraçar o público antigo por inteiro — essa é a forma mais difícil (se não for impossível) de se renovar qualquer coisa. É culpa dos fãs quarentões que a Toei falha em tentar executar os objetivos que se propõe?
No mais, vem também a pergunta: quem pediu por essas coisas? Nenhum fã de Saintia Shô pediu uma adaptação animada de baixo orçamento que distorcesse a trama toda do material original. Nenhum fã de Cavaleiros pediu um filme live-action recontando a trama original (ok, esse alguns pediram, mas não muitos). Nenhum fã pediu um reboot que joga no lixo o personagem mais emblemático do círculo principal.
E, aliás, por que a Toei inventou que para renovar a franquia, ela precisa ficar recontando a mesma trama? Quem pediu o mesmo reboot três vezes em mídias/formatos diferentes nos últimos 5 anos? Ninguém. Inclusive, todos os maiores sucessos de Cavaleiros fora das mãos do Kurumada vieram de histórias que se referem ao clássico, mas não recontam ele (Lost Canvas e Alma de Ouro). Já nos mangás, Rerise of Poseidon tem conseguido re-interessar uma parcela de fãs que já não acompanhava muito mais a série, mostrando que até os quarentões podem gostar de uma nova proposta da franquia.
Os “manchetossauros” não estão impedindo as novas produções, pelo contrário, elas acontecem independentemente deles (e sequer existe um conceito tão similar no fandom japonês, que é praticamente todo +40 anos). Os “manchetossauros” não estão impedindo a Toei de investir em produtos da série — se ela não o faz, é porque não quer. O que é evidente nos últimos anos é que quem toma as decisões executivas da franquia não faz a menor ideia do que está fazendo e não sabe quais escolhas fazer, para quem apelar, como tentar coisas novas.
É culpa dos fãs que foram entregues produtos pífios, mal-executados, e com baixo orçamento para a ambição dos projetos? Não. Como se culpabiliza os fãs pelo “fracasso” de uma franquia milionária que sempre aparece no top 5 de receita internacional da Toei?
Ou os fãs não podem mais expressar nas redes a insatisfação com as coisas? Todo mundo agora é obrigado a gostar de tudo? A aceitar tudo? A fingir que não viu depois de não ter gostado?
Mas, mais importante do que isso: a quem interessa essa “guerra cultural” entre fãs da série, que ficam uns botando nos outros a culpa de produções flopadas da franquia?
Os fracassos são todos produzidos e assinados pelos mesmos agentes, mas quem fica com a culpa não tem qualquer voz de decisão. Isso é o mesmo que dizer que a Marvel hoje sofre reveses por causa dos fãs, e não do modelo de negócios, que pouco tem a ver com ter muita ou pouca “lacração”.
E veja, não existe problema também em gostar dessas novas produções e falar disso. O problema é justamente que existe uma briga de valor moral no meio dessa discussão sobre gostos. Quem não gosta de x é “ruim”, “saudosista”, ou quem gosta de y é “iludido”, “engole qualquer coisa”, “passa pano”, quando justamente a entrega, que é visivelmente feita em condições precárias (mais precárias que outros produtos da Toei), é o real problema, e deixa de ser o foco da discussão.
Eu me considero uma “fã minoritária” de Cavaleiros, porque eu gosto do que quase ninguém gosta. Eu gosto da série antes das Doze Casas, porque pra mim é o momento com mais interações entre os protagonistas e desenvolvimento de personagens — aliás, eu considero 12 Casas um trecho enfadonho do mangá e do animê, e prefiro o trabalho na Saga de Poseidon. Eu gosto da Saori (e defendo ela), e eu gosto de ficar pensando em coisas inúteis como a fonte de renda da Fundação Graad. Eu amo o mangá de Saintia Shô, que é para mim o melhor da franquia. Eu tenho ships lésbicos entre algumas personagens da série. Eu gosto da ideia de ter uma escolinha de Cavaleiros em Ômega (eu adoro toda a primeira temporada de Ômega).
Eu sei muito bem que isso tudo me faz uma parcela minoritária entre os fãs. Eu sei que o chamativo da série são os cavaleiros de bronze e os de ouro (e eu gosto mais dos de bronze!), e as lutas. Já faz muito tempo que eu aceitei que um produto de Cavaleiros que vai agradar a mim vai provavelmente incluir diversas coisas que eu não gosto tanto para ter apelo comercial — e, mesmo assim, eu sigo acompanhando Cavaleiros.
E mesmo eu, que sempre prefiro quando a franquia vai em direções diferentes, não aguento mais esse mais do mesmo disfarçado de novidade, que no fim não agrada nem aos “fãs majoritários”, nem aos “minoritários”, nem a quem nunca viu nada da franquia. Tá na hora da gente parar de se culpar pela incompetência alheia. Se tem algum “quarentão” responsável pelo fracasso da franquia, é um rico engravatado que dá o aval para os novos projetos.