Cardcaptor Sakura é mesmo esse banho de representatividade não-heteronormativa?

Laura
nanicriticas
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11 min readMar 4, 2019

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Cardcaptor Sakura é, frequentemente, considerado um mangá com uma enorme representatividade LGBT. Não entrando tanto em questão de gênero, gostaria de comentar um pouco sobre a forma como a sexualidade é retratada nessa obra, ou seja, o T ficará fora dessa discussão por se tratar de uma questão de gênero, me desculpem, e vou falar um pouco também de relacionamentos heterossexuais.

É verdade que existem muitos personagens que, ao menos aparentemente, fogem da heteronormatividade, mas, na minha visão, não é bem verdade que essa obra é tão representativa quanto dizem muitos comentários que leio por aí. Primeiro, quero deixar claro que falarei apenas do mangá original, eu não faço nem muita ideia do que acontece em Clear Card-hen e nem seria justo colocá-lo aqui, já que 20 anos depois é esperado que haja mudanças. Não é justo com uma obra dos anos 90 considerar outra da década de 2010 como uma complementação desse ponto de vista.

Enfim, vou me ater ao círculo principal, que curiosamente é onde se encontra a grande maioria dos personagens “LGB”: Sakura, Shoran, Tomoyo, Touya e Yukito. Desses 5 personagens, dois assumidamente possuem um interesse romântico-afetivo em alguém do mesmo gênero ao longo da trama (Shoran e Tomoyo) e dois têm relacionamentos sugestivos com alguém do mesmo gênero (Touya e Yukito). Aparentemente, só a Sakura, personagen principal, é hétero.

© CLAMP/Kodansha

Para quem nunca leu a história e mesmo assim quer ler esse texto, vou explicar um pouco como ocorre com cada um desses personagens supostamente “LGB”. Tomoyo, melhor amiga de Sakura, logo no início da trama (é coisa tipo volume 1 ou 2) conta ao leitor que gosta da amiga de um “jeito diferente” e, ao longo da história toda, vai deixando (para o leitor!!!) óbvios seus sentimentos românticos em relação à personagem, que nunca corresponde (na verdade, ela sequer percebe). Além disso, ela não possui nenhum outro interesse da mesma ordem em mais ninguém durante toda a obra. Já Shoran passa praticamente metade do mangá correndo atrás do Yukito, chegando a dar para ele um chocolate de Valentine’s Day. Ele também não é correspondido e, em dado momento, fica confuso se gosta do Yukito ou da Sakura, escolhendo, ao final, Sakura (o que é ótimo pois ele tem 10 anos e o Yukito, 16). Por fim, Yukito e Touya possuem uma amizade altamente sugestiva, estão juntos o tempo todo e falam para terceiros sobre o sentimento que possuem um com relação ao outro (falam coisas como “ele é a pessoa mais importante para mim”).

Pronto, dado um contexto inicial, vamos olhar com mais calma. A princípio, isso tudo parece ótimo, não? E é! Para os nossos padrões ocidentais de narrativas infanto-juvenis ao menos, é extremamente ousado. Nos anos 2000, quando o anime e o mangá vieram para cá, provavelmente não tínhamos nada mostrando sexualidades não-hétero de forma tão clara para esse público. Mas ousado não significa representativo.

Para entender um pouco de onde vem essa liberdade com a qual Cardcaptor aborda esse tema, temos que pensar um pouco na produção de mangás no Japão. Segundo Shamon (2007), indústria shoujo possui heranças dos romances para mulheres que eram publicados no pré-guerra, a autora nos traz um pouco sobre eles: esses romances, escritos por homens, geralmente abordavam garotas em idade escolar, que estudavam frequentemente em internatos, e, bem, estavam crescendo em um ambiente só ou majoritariamente formado por mulheres (chama-se a isso de homossocialidade feminina). Era normal elas possuírem uma amiga íntima com a qual dividiam as experiências e, muitas vezes, as relações entre as duas possuíam tons românticos/sexuais (tons, ok? estamos falando de subtexto). Mas, calma lá! Essa “amiga” não era qualquer uma não. As moças eram, necessariamente, parecidas, seguindo o conceito chamado pela autora de dousei-ai: elas se portavam da mesma forma, tinham gostos parecidos, pertenciam à mesma classe social, se vestiam de forma parecida… enfim, independente de tom, era uma relação entre iguais.

Que avançado, né? Não exatamente. Nessa época, havia uma visão entre sexólogos japoneses de que a intimidade feminina era natural, porém, como uma fase de experimentação. Como assim? Bem, as meninas dividiam experiências… até elas terminarem a escola e estarem em idade para casar. Aí, elas iriam cumprir o papel social de mulher: arranjar um marido, ter filhos e cuidar da casa. Tudo bem ser gay, desde que não seja para sempre.

O ponto da autora é: os shoujos herdam essas características, em maior ou menor grau, até mesmo na hora de tratar relacionamentos heterossexuais. E bem, até os anos 70 isso faz certo sentido: a indústria shoujo era o início de um plano de carreira. Mulheres não podiam escrever mangás (nem fazer quase nada), as obras eram feitas por mangakás homens, que frequentemente começavam por ali torcendo para chamarem a atenção de algum editor e serem chamados para revistas shonen, que eram muito mais interessantes para eles. Isso tudo muda na época das chamadas 24-nen gumi, mulheres nascidas em torno do ano 24 da era Showa (1950) que entram na indústria shoujo na década de 70 querendo escrever shoujo. Entre elas está Riyoko Ikeda, a escritora de A Rosa de Versalhes, o primeiro shoujo a abordar um romance hétero. Enfim, os homens que escreviam os mangás até então “não sabiam como escrever uma história de amor que agrade as garotas” e por isso, não escreviam romances (pois o único tipo é o hétero!) e sim histórias presas a um reduto homossocial feminino e é bem possível que se inspirassem naqueles romances “velhos” como referência ou que as noções já estivessem suficientemente enraizadas na cultura.

Mas o que isso tem a ver com Cardcaptor? Simplesmente tudo. Dá para se pautar nessa autora na hora de entender os pares na obra.

© CLAMP/Kodansha/Madhouse

Mas antes, vamos entrar um pouco mais em alguns personagens citados, começando pelo Shoran, que condensa alguns pontos interessantes. Ele, portador de poderes mágicos, entra na trama sentindo algo pelo Yukito e rivalizando com a Sakura, que tem uma queda assumida pelo boy de 16 anos (e quem não tem uma queda pelo Yukito nessa obra, não? é pelo menos metade do elenco nisso). Em nenhum momento, os outros personagens o julgam por isso mas em um ponto, ele diz para a Sakura que não sabe de onde vem esse sentimento, o que indica que é algo novo e que possivelmente o incomoda. Posteriormente, ele começa a sentir algo também pela Sakura e entra em um estado de confusão sobre seus interesses românticos, sendo então bissexual. Eu acho essas passagens incrivelmente maravilhosas pois tratam um assunto complexo como a descoberta (e a dúvida!) sobre a própria sexualidade de uma forma muito positiva ao mesmo tempo que deixam claro o inferno que é se ver fora da norma. Enfim, ele decide que “gosta mais” da Sakura (e também leva um toco do boy mesmo). Infelizmente, depois, sua bissexualidade sofre uma espécie de apagamento quando é explicado que ele gostava do Yukito porque “as magias deles se atraem”. Pessoalmente, não acho que isso apaga o fato que o garoto passou metade da obra correndo atrás de outro cara, mas tem seus problemas e consequências. Ele termina a trama namorando a Sakura, isso é importante, guardem essa informação.

Já que comentamos do Yukito, vamos falar um pouco mais dele. Primeiro, o personagem é a identidade/disfarce humano de Yue, um guardião das cartas Clow criado pelo mago Clow. Ou seja, ele tem magia (é o boy magia…) mas não sabe disso porque a identidade humana não tem conhecimento sobre a identidade real. Bom, o Yukito está quase sempre com o Touya, ele vai pra escola com o Touya, dá rolê com o Touya, às vezes come e dorme na casa do Touya (que é a casa da Sakura também porque eles são irmãos) e, ao final da trama, ele quase morre por causa do Touya, pois está dando um ruim complicadíssimo com as magias e ele inconscientemente não quer que o Touya descubra que ele não é um humano de verdade, isso quase consome a vida dele. Mas, o Touya, na verdade, já sabia porque ele também possui magia e aí dá tudo certo, afinal, é Cardcaptor. Enfim, os dois tem um relacionamento em que estão sempre juntos, com tons românticos. Só que, nada além disso é mostrado, não há cenas que deixe realmente evidente qual é a relação entre os dois, guardem essa informação também.

Por fim, temos a Tomoyo, a coitada da trama. Como já dito, ela só tem um interesse romântico durante toda a história: a Sakura, que nunca corresponde. A função da Tomoyo é simplesmente ser um tanto stalker estranha e estar lá motivando Sakura no seu papel de melhor-amiga-que-na-verdade-gostaria-de-ser-uma-namorada. Aparentemente, ela não sofre em nenhum momento pela crush gostar de outra pessoa, frequentemente repetindo que “se a pessoa que eu gosto está feliz, então eu estou feliz, yay!!!”. A personagem basicamente estagna nisso que, sinceramente, é uma posição completamente irreal de se ocupar. Bem, ela termina sozinha e sem perspectiva de ter uma nova crush (porém feliz??), não vamos esquecer.

O papel passivo da Tomoyo nesse ponto é algo que me incomoda mas depois de ler o texto da Shamon, ele passou a fazer mais sentido: Tomoyo não pode ter nada com Sakura porque elas não seguem o dousei-ai. Aliás, ela não pode ter nada com ninguém porque é deslocada de todo mundo e isso já começa esteticamente, o design dela é mais distante de todos os outros citados. Fora isso, ela é a única personagem do círculo principal que não possui magia e está curiosamente numa classe social diferente de todo o resto. A Tomoyo não tem mais interesses românticos porque não há mais ninguém cumprindo um papel parecido com o dela na trama (por exemplo, ao contrário dos outros personagens sem magia, ela é mais do que uma figurante). Eriol até ameaça ser mas ele é mago e fica com a professora pedófila, além de Tomoyo não parecer interessada.

© CLAMP/Kodansha

O Shoran, por outro lado, é muito mais próximo da Sakura: eles usam magia, estão ambos procurando as cartas, crusham no mesmo boy, tomam um toco dele (os dois!!!) e inclusive possuem algum grau de parentesco com o mago Clow. Além disso, visualmente ambos são muito parecidos, embora aqui podemos estar falando apenas de estilo das autoras. Eu, pelo menos, sempre achei o Shoran quase uma versão masculina da Sakura, e com isso quero dizer uma versão da Sakura com sobrancelha grossa. De qualquer forma, o relacionamento entre eles segue é o princípio do dousei-ai, eles são parecidos (psicológica e narrativamente, ao menos)e só consumam um relacionamento quando estão em pé de igualdade: ambos se dão conta do quanto gostam um do outro depois de levar um toco do Yukito, o romance só ocorre depois que eles passam pelo processo de entender melhor seus sentimentos e se recompor.

© CLAMP/Kodansha

Touya e Yukito também são parecidos (talvez não tanto quanto Sakura e Shoran no design mas ainda um tantinho): eles possuem um papel de guardião em relação à Sakura, escondem o fato de possuírem poderes mágicos, fazem um sacrifício em relação a esses poderes (Touya abre mão dos poderes em prol do Yukito, que de certa forma abre mão dos dele ao não viver como Yue) e são filhos do mago Clow em certo sentido. Podem achar forçação de barra em alguns pontos, mas creio termos um bom grau de semelhanças. De qualquer jeito, os dois não são um casal oficial. Já deu para entender um pouco como o dousei-ai proposto pela Shamon pode dar uma luz em relação à trama, né?

© CLAMP/Kodansha

Lembram das informações que pedi para guardarem? Vamos voltar a elas agora: Shoran, um bissexual, termina numa relação hétero, Touya e Yukito não possuem relacionamento definido e Tomoyo termina sozinha. E daí? Bem, é curioso como nenhum relacionamento não-hétero é oficializado nessa obra. Nós sabemos dos sentimentos de dois personagens, mas não há ato em relação a isso, são só sentimentos que lá estão expostos, e um deles segue em frente dentro da norma. Já o casal 20 nunca é confirmado; fica claro em certo momento que eles provavelmente gostam um do outro de forma romântica, mas não é mostrado ao leitor que eles possuem algo além de uma amizade, fica tudo no domínio da especulação e imaginação. A obra chega no ponto de mostrar um relacionamento anterior do Touya com uma professora mas não mostra nada do mesmo naipe com relação ao Yukito. Se alguém ler a obra e falar que os dois são só amigos, não existe qualquer evidência no mangá todo para refutar essa afirmação. É bem aqui que o outro ponto da Shamon entra.

O mangá não tem qualquer pudor ao mostrar um professor figurante de mais de 20 anos dando um anel “de noivado” para uma aluna de 10 anos igualmente figurante (qual é o problema dessa obra com professores?!?), mas não traz nenhum dos personagens principais “LGB” numa relação factual que confronte a heteronormatividade. Inclusive, a única personagem solteira e abertamente não-hétero está reduzida a um discurso de “não tem problema desde que ela esteja feliz”, sendo também a única a levar um toco e não trabalhar em cima disso para superar e seguir em frente. Fica parecendo que ainda estamos no domínio da “homossexualidade transitória”: os relacionamentos “reais” devem ser os heterossexuais, se não tem como ser hétero, então não tem relacionamento.

Não quero, aqui, culpar a CLAMP ou dizer que nada disso presta. Não sei o quanto as autoras gostaria de fazer, mas foram barrada pelos editores, o quanto elas nem perceberam o que faziam, nem nada. Eu acho que Cardcaptor tem coisas muito inovadoras pensando em anos 90, ainda mais quando isso chega pra um público brasileiro, nem um pouco acostumado com esse tipo de assunto sendo tratado de forma tão aberta. Mas, querendo ou não, o mangá, no fim, reforça apenas os relacionamentos heterossexuais, sustentando um tipo de heteronormatividade meio diferente da que estamos acostumados a ver.

É uma história com uma protagonista cercada de pessoas LGBTs e que lida muito bem com isso (inclusive namora o garoto que gostava do mesmo boy que ela), no mínimo, temos uma mensagem positiva em relação à aceitação dessas pessoas. Mas isso não quer dizer que todas as representações da obra são boas, respondendo à pergunta do título: não, a obra não é isso tudo. Cardcaptor nos mostra como é possível ter uma forte presença e protagonismo de marginalizados mas ainda assim mantê-los na posição socialmente marginal.

No fundo, acho que o que fica é: toda representatividade é boa? Se não, então qual a representatividade que defendemos?

Referências

CLAMP. Cardcaptor Sakura — Edição Especial. Tradução por Luiz Octavio Kobayashi. São Paulo: Editora JBC, 2012–2013. Volumes 1–12.

SHAMOON, D. Revolutionary Romance: “The Rose of Versailles” and the Transformation of Shojo Manga. Mechademia, 2, 3–17. MES 2007. Disponível em < http://www.jstor.org/stable/41503726 >.

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